26 de outubro de 2009

Sir Gawain e o Cavaleiro Verde



Todos os anos em que havia paz no reino, na época de Natal, uma grande celebração enchia o castelo do Rei Arthur com música, banquetes e histórias. Os Cavaleiros da Távola Redonda contavam sobre suas aventuras no País do Norte, onde sua coragem e a virtude eram testados por estranhos. E cada conto relatado tornava-se mais impressionante do que o anterior.
– “Diga-nos, jovem Gawain” – disse um cavaleiro dando uma risada – “Qual de tuas grandes proezas irás nos contar?”
– “Bem, eu...” – Gawain gaguejou porque ele era o mais jovem e inexperiente dos cavaleiros.
– “E-eu eu deveria espantar os pássaros das copas das árvores com mi-mi-minha eloquência” – interrompeu um outro, e todos os cavaleiros e damas à mesa deram altas gargalhadas.
Essa não foi a primeira brincadeira que criaram para fazer pouco caso do jovem Gawain. Mas dessa vez uma donzela da corte chamada Caryn gritou – “Eu acho que um dia Gawain ira rivalizar com o melhor de vocês!” – Ela falou com tanta emoção que os convidados riram novamente. Mas eles foram interrompidos por uma voz tão forte quanto um trovão das repentinas tempestades de verão.
– “Perdoe-me, bom Rei” – rugiu ele.
Ao mesmo tempo, todos voltaram as cabeças em direção à entrada. Ali em pé, estava o homem com a aparência mais estranha que alguém já vira. Maior do que o mais alto dos cavaleiros, com pernas grossas como carvalhos, ele era verde da cabeça aos pés. Apenas o ornamento dourado de sua túnica e seus olhos, que produziam um vermelho como brasas, é quebravam a intensa cor de sua figura.
– “Bravos Cavaleiros da Távola Redonda” – proclamou o Cavaleiro Verde – “Eu vim propor um pequeno jogo natalino, um teste para vossa coragem. Um de vós deve desferir um golpe forte com este machado em meu pescoço. No entanto, cuidarei de minha sobrevivência, pois me deve ser permitido um golpe em resposta. E como sou eu um esportista, meu companheiro de jogo deve ter o tempo de um ano e um dia antes que eu levante a lâmina contra ele”.
O próprio Rei Arthur preparava-se para aceitar a proposta, mas Gawain sentiu seu sangue ferver. “Esta é a minha chance”, pensou ele. E dando um passo adiante, disse – “Eu farei isso!” – e gritou mais alto então – “Darei cabo do desafio!”
O riso do Cavaleiro Verde atravessou o salão como o vento da primavera galopa através das árvores. – “Boa sorte, rapaz” – disse ele, ainda rindo. O cheiro de sua respiração era algo de adocicado e podre, como grama cortada e deixada por muito tempo no canto de um celeiro. Então se ajoelhou, depois apoiou as mãos no chão e disse – “Ela é toda tua, jovem cavaleiro” – e ele apontou para a pele verde exposta de seu pescoço.
Gawain olhou de relance para Caryn. Então respirou fundo, brandiu a brilhante lâmina para o alto e com força a conduziu novamente para baixo. O machado retiniu sobre o chão de pedra e a cabeça cabeluda do Cavaleiro Verde saiu voando de seu corpo.
– “Oh, meu bom Deus” – murmurou Gawain diante da cabeça rolando pelo chão. Mas o silêncio do público rapidamente deu lugar a um arfar de surpresa. Eis que o Cavaleiro Verde estava se levantando. Então ele dirigiu-se confiante para sua cabeça, apanhou-a pelos cabelos e ergueu-a como se fosse uma lanterna.

– “E agora, jovem Gawain” – falou a cabeça – “Como nós acertamos, tu tens um ano e um dia até nosso encontro, quando será minha vez de usar a lâmina. Tu encontrarás a mim no País do Norte, onde sou conhecido como o Cavaleiro da Capela Verde. Adeus.” – E com isso ele apanhou seu machado e passou pelo arco de pedra da porta, com sua profunda gargalhada ecoando pelas paredes atrás dele.
Nos dias e meses que se seguiram, Gawain e Caryn passaram mais e mais tempo juntos. Mas antes que eles se dessem conta, o inverno estava chegando novamente. Em breve chegaria o tempo de o jovem cumprir sua promessa de encontrar-se com o Cavaleiro da Capela Verde. E ao anoitecer do dia anterior a sua partida, o casal enamorado subiu até o alto de uma torre do castelo para ver a neve caindo sobre as colinas. A luz era azulada e todo o mundo parecia estar em silêncio.
– “Eu tenho algo para ti, Gawain” – disse então Caryn. E de dentro de seu manto ela retirou uma faixa de seda, bordada com figuras intricadas. – “Ao longo de todo este ano, em segredo, eu estive tecendo isto. Leve contigo em tua jornada como uma lembrança” – E ela lhe entregou a faixa.
Tão bravamente quanto podia, Gawain disse – “Até que eu retorne, eu jamais me separarei disto, eu prometo”.
No dia seguinte, como ele havia acertado, Gawain se preparou para ir em busca da Capela Verde. Os Cavaleiros da Távola Redonda vestiram suas melhores armaduras, honraram sua coragem e desejaram-lhe boa sorte. E logo o jovem cavaleiro, montado em Gringolet, seu cavalo, deixou as fazendas do país com seus celeiros para trás. E as montanhas, com seus penhascos, elevavam-se como os dentes de um lobo, e os rios e florestas já não eram mais os de sua terra. E mesmo assim, ninguém dentre as pessoas que encontrava pelo caminho havia ouvido falar do Cavaleiro Verde.
Finalmente, quando o natal estava próximo, Gawain distinguiu a forma de um glorioso castelo elevando-se acima das brumas diante dele, sobre um alto platô. Agradecendo sua boa sorte, ele alcançou os portões do castelo e gritou – “Sou um cavaleiro da Távola Redonda do rei Arthur procurando pela Capela Verde. Vós podeis me ajudar?”
Prontamente, os imensos portões de madeira se abriram com um rangido.
– “Bem, olá cavaleiro viajante” – disse o grande homem animado que veio para cumprimentá-lo. – “Eu sou Sir Bertilak, e ficaria satisfeito em ajudar-te. Mas antes, tu deves juntar-se a mim e a minha esposa em nossa comemoração natalina. Pois nós adoramos visitantes do sul” – e ele riu amigavelmente.
E assim, Gawain tomou um banho quente e colocou vestimentas novas. No jantar, ele sentou-se no lugar de honra, entre Sir Bertilak e sua esposa. Ele nunca havia provado especiarias tão deliciosas, ou foi entretido por alguém com tanto charme como Lady Bertilak. Seu riso era limpo como música, e quando falava suas mãos moviam-se como pássaros através do céu.
Ao fim da celebração, todos no castelo haviam ido dormir, mas Gawain virava de um lado para outro na cama gigantesca do quarto de hóspedes do castelo, perguntando a si mesmo se esta seria sua última noite sobre a terra. Passado algum tempo, ele ouviu uma leve batida na porta. Ela lentamente se abriu e Lady Bertilak entrou. Seu longo cabelo estava solto, quase pela cintura, e em seus olhos havia uma luz pálida e encantadora. E Gawain pensou consigo que talvez estivesse sonhando.
– “O Cavaleiro Verde” – sussurrou a Lady, aproximando-se dele – “é o mais mortífero dos adversários, sem dúvida. Mas eu conheço uma maneira para que tu talvez sejas poupado” – e ela se aproximou, e seu cabelo brilhou como se estivesse banhado pela luz da lua – “Troque comigo essa tua faixa de seda por esta aqui” – e de sua túnica ela tirou uma fita de seda rubra – “Esta é uma fita mágica, Gawain. Ela irá proteger você do machado do Cavaleiro Verde, e conservará sua vida”.
As dobras escuras da faixa pareciam esticar e enrolar-se diante de Gawain, como um caminho através de uma enorme floresta. Mas aos olhos de usa mente Caryn apareceu e a nobreza de seu coração elevou-se.
– “Não” – ele disse – “sua oferta é generosa, mas se eu a aceitar certamente de nada valerá minha vida. E seja como for, estarei com a faixa que agora tenho amarrada em minha cintura. Eu manterei minha promessa”.
–“Que assim seja” – disse Lady Bertilak – “Boa sorte, jovem Gawain” – então caminhou em direção à porta. Para o cavaleiro cansado, pareceu que ela havia desaparecido nos raios do amanhecer. E uma luz cinza arrastou-se pelo chão do quarto, já era dia.
E então, Gawain logo se encontrava cavalgando para o vale que abrigava o Cavaleiro Verde e sua capela. Um ruído agudo de amolação soou pelo ar, e faíscas saltavam como uma chuva vermelha através da límpida manhã. O Cavaleiro Verde afiava seu machado.
– “Bem vindo, rapaz!” – berrou o cavaleiro para Gawain. Seu riso ecoava pelo vale estreito. Com tanta coragem quanto ele pode demonstrar, o jovem ajoelhou-se para receber o tenebroso golpe do cavaleiro. Ele pensava em Caryn e em todas as figuras bordadas sobre a faixa quando o machado desceu com violência.
Gawain aguardou por um momento e então por outro mais. Ele sentiu um fio de sangue quente escorrer pelo seu pescoço. Mas sua cabeça ainda estava sobre seus ombros. A lâmina cortara tão somente sua pele. Ele levantou e corajosamente puxo sua espada longa. Mas o Cavaleiro Verde apenas sorriu para ele.
– “Agora não estragues nosso bom esporte essa tua espada, Sir Gawain” – disse o Cavaleiro Verde, e então ele lhe estendeu a mão. Surpreso, Gawain guardou sua espada de volta na bainha e, como era o velho costume, apertou o pulso do Cavaleiro Verde.
– “Considera-te um verdadeiro campeão em nossa pequena disputa!” – continuou o Cavaleiro Verde – “Tu provaste teu desejo pela nobreza dos cavaleiros quando aceitaste nosso desafio, e tua honestidade e coragem quando cumpriste tua palavra e compareceste ao nosso encontro. E, o mais importante de tudo...”
Então, ouviu-se uma voz de dentro das profundezas da Capela Verde. – “O mais importante de tudo” – disse Lady Bertilak, que estava saindo nesse instante, para se juntar ao Cavaleiro Verde – “tu foste fiel aos mistérios de teu próprio coração”
Então o Cavaleiro Verde soltou uma sonora gargalhada. E seu cabelo enrolado tornou-se vermelho como um pôr-do-sol. Um momento depois, ali diante dos olhos arregalados de Gawain, estava Sir Bertilak. – “Tu agora tens uma verdadeira história para contar na Távola Redonda, não é rapaz?” – ele disse e gargalhou novamente – “E essa marca em seu pescoço, considere-a como uma pequena lembrança do pai do Norte”.
– “Adeus então” – disse Gawain cordialmente. Ele montou seu cavalo e acenou se despedindo naquela clara manhã de inverno. Deu meia volta e esporeou Gringolet para fora do vale, deixando-o para trás, indo em direção ao seu lar, ao Rei Arthur e a Caryn.

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Esta é mais uma tradução livre que faço de um antigo conto, cujo texto original não encontrei novamente na web para colocar um link aqui. Esse texto é na verdade uma versão compacta de um romance aliterante do século XIV escrito em Inglês Médio. Segundo a Wikipedia, “Sir Gawain and the Green Knight” sobreviveu em um único manuscrito, o Cotton Nero A.x., e é um poema importante no gênero romântico, que tipicamente envolve um herói que parte em uma jornada que testa suas habilidades. A ambigüidade do final leva a uma complexidade ainda maior.
Além de seu complexo enredo e rica linguagem, o uso sofisticado do simbolismo medieval é o principal interesse da crítica literária. A história continua popular até hoje, graças às traduções de renomados escritores, sendo que um deles foi J. R. R. Tolkien.
O diretor inglês Stephen Weeks fez dois filmes baseados nesse poema: "Gawain and the Green Knight" de 1973 e "Sword of Valiant: The Legend of Sir Gawain and the Green Knight" de 1984.



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