9 de julho de 2009

A Espada na Pedra


He’s the one who took the sword
Out of the stone

It’s how the ancient tale began

Blind Guardian, A Past And Future Secret

A cada dia, a saúde do Rei tornava-se mais debilitada, e o anjo da morte rondava seu leito.
E como a cerveja preta que transborda de uma caneca e se espalha pela mesa, a notícia correu ligeira pelo castelo, e do castelo por todo país. Em toda esquina, mulheres tagarelavam sobre os rumores, e os homens ficavam perturbados e falavam a respeito com pesar.
Era verdade que o Rei Uther já estava sofrendo há muitos e cansativos meses daquela doença fatal, e portando, o agravamento de sua moléstia não surpreendeu ninguém. Mas, eram as estranhas deformações que seu mal lhe acarretou é que realmente despertavam espanto e consternação. Pois, era notório que o Rei fora imprudente.
Há poucos dias, suportando as dores, e curvado como um leão ferido, ele esteve no campo de batalha, e sua presença pode inspirar a coragem em seus homens. Havia conquistado a vitória, vitória pela qual o valente monarca teve que pagar muito caro. E agora, ele repousava, encarando a morte, incapaz de dizer uma palavra.
Por isso, nos cantos obscuros do castelo, cavaleiros conversavam entre si. – “Certamente, grande é o mal que recaiu sobre o Rei e sobre o reino”. – murmurou um deles, em tom de protesto – “Desde que se soube que nosso monarca morreria, e em breve ele deve morrer, pois é o destino de todos os homens, pouco temido pelos valentes, devia-se ter tomado providências no sentido de indicar um nome à sucessão”.
– “Com tantos barões ansiosos por arrebatar para si a coroa de nosso belo reino, teria sido algo muito bom se o rei tivesse deixado um filho para sucedê-lo” – disse outro.
– “Sim, mas como ele não deixou nenhum,” – replicou o primeiro – “teria sido bom se a Divina Providência não lhe tivesse negado o uso língua para escolher alguém.”
Assim, continuaram discutindo entre si, até que subitamente passos fizeram-nos voltar os olhares, e o que viram fez com que ficassem imediatamente em silêncio. No entanto, o dono daquelas passadas não nenhum nobre poderoso. Quem cruzara o átrio era Merlin, o mago, vestindo seu manto escuro e usando o capuz, que mantinha seu rosto oculto em sombras. O silêncio permaneceu até o mago sair dali.
– “Merlin está indo aos aposentos do Rei” – observou um dos homens, seguindo com seus olhos a figura sombria.
– “Este deve ser um dia triste para Merlin, pois ele era um bom amigo do Rei Uther” – disse outro – “ouvi dizer que seus encantos teriam auxiliado muito o rei em relação a seu casamento.”
– “Mas, agora ele pouco pode fazer para ajudá-lo” – murmurou um terceiro – “a morte é mais forte do que as artes de Merlin, e seus cadavéricos dedos já estão sobre o Rei.”
Nesse momento surgiu outro desocupado, e se aproximou do grupo com um olhar radiante e um sorriso de desdém nos lábios, como se soubesse de algo importante, que compartilharia com eles para iluminar-lhes a ignorância, a fim de enaltecer a si próprio.
– “Vós vistes Merlin passar?” – perguntou ele, com o queixo levantado e um ar arrogante.
– “Sim, nós o vimos” – foi a resposta – “e quão soturno era seu passo. Ele foi visitar o Rei, que bem pode expirar derradeiramente antes que o mago o encontre.”
– “Que os Santos não permitam!” – exclamou o recém chegado – “Isso seria algo ruim para Merlin. Pois, não prometera ele, para o dia de hoje, na presença da Rainha e dos Nobres que, com seus místicos artifícios, e com o auxílio dos Céus, faria com que o Rei falasse?”
Diante daquela notícia, todos ali ficaram boquiabertos e de olhos fixos na figura daquele que a trouxera, ao passo que se aproximavam ainda mais dele. O fuxiqueiro, saboreando o efeito que tinha produzido, prosseguiu com sua conversa, derramando detalhes como quem vira um cálice. E, como se fosse um vinho fino, os ouvintes beberam de sua história.
Enquanto isso, Merlin havia alcançado os aposentos do Rei.
As portas fecharam-se atrás dele, e retirou o capuz da cabeça, avaliando a Aristocracia reunida e a Rainha em prantos.
– “O Rei ainda vive?” – Inquiriu ele duramente.
– “Ele ainda vive, mas é tudo” – respondeu uma voz, num lamento.
– “E não vos falou?”
– “Ele não nos disse uma palavra” – murmurou um Nobre – “Lembre-te, Merlin, tua promessa, dada ontem a nós: ‘Reuni-vos, pois, ao Rei em sua câmara, amanhã a esta hora, que pela graça de Deus, e com o auxílio de meus encantos, o Rei Uther dará o nome de seu sucessor ao trono.’ ”
– “É verdade o que recordas.” – disse o mago indiferentemente – “Essas foram realmente as palavras que proferi.”
Então, ele se aproximou da cama do Rei, e nuvens acumularam-se em seus olhos como as que se juntam no céu antes da chuva.
– “Esta é a vontade de todos,” – disse voltando-se aos demais – “que eu faça o Rei falar, perturbando assim, seu espírito adormecido? Para que vos revele o nome de seu sucessor?”
– “É nossa vontade.” – disseram os Lordes; e a Rainha também respondeu – “Essa é a nossa vontade.”
Merlin fechou seus olhos por um momento, então, voltou-se para a cama, – “Majestade” – disse ao Rei – “conte-nos sua vontade em relação ao bem estar de seu reino. É de seu desejo que seu filho Arthur o suceda, tornando-se regente supremo desta terra.”
Essas palavras mal foram ditas quando o Rei respondeu, em sua própria voz, e sem pausas – “É meu anseio e desejo sincero que meu filho Arthur use minha coroa. Eu ordeno-lhe, portanto, que a reclame, quando for chegada a hora, e que seu espírito seja correto e justo, e que tenha ciência que governar estes domínios é seu dever e sua responsabilidade. Se ele não o fizer, que perca, então, as bençãos que lhe concedo agora.”
O Rei havia proferido duramente essas palavras, quando, com um suspiro, sua respiração cessou e ele morreu.
Então, os Nobres, tomados pelo desespero e pela raiva, começaram a acusar Merlin entre eles, chamando-o de impostor, entre outras alcunhas semelhantes. – “Isso Foi um truque de Merlin,” – diziam – “ele deve ter manipulado as palavras na boca do Rei; além disso, ele bem sabe que o Rei Uther não tem filho algum. Seria melhor se ele tivesse feito o Rei indicar o nome de um de nós para sucedê-lo, assim teria sido muito mais simples, e nenhuma desordem se abateria sobre o reino.”
Sussurrando assim, entre si, eles lançavam olhares coléricos para o Mago. Mas, ele ocultou sua face, virou-se e, sem palavra alguma, foi embora.
Dessa forma, morreu o Rei Uther, tendo nomeado como sucessor um filho, de quem os Nobres nada sabiam; e por muitos anos, o reino justo que ele havia governado, foi dilacerado por conflitos, por batalhas e por disputas acirradas. Pois, havia muitos Lordes que almejavam a coroa para si, e que se lançariam à fúria da batalha com maior fervor do que profeririam uma oração.
Assim, os Nobres se esforçavam, discutiam e guerreavam, enquanto os anos passavam, e a glória do reino esmaecia. Mas, amanheceu um dia, quando os Lordes estavam cansados de si mesmos, de suas reivindicações, e do caos em que o país se encontrava, que não mais relutaram que dentre eles um deveria ser escolhido para ser o Rei.
Então, Merlin foi visto novamente, caminhando por entre o povo, envolto em seu manto sombrio. Era sabido que ele havia pedido uma audiência com Arcebispo de Canterbury. E quando estava diante dele, Merlin disse:
– “Não é algo terrível, que o nobre reino da Inglaterra deva ser dilacerado pelas intenções de homens ambiciosos? Pois, é chegado o dia, em que tu tens a oportunidade de restaurar e partilhar de uma porção da antiga glória. Eu rogo a ti que reúnas os Lordes deste reino e os Senhores de armas, para que eles peçam em oração a Deus, para que Ele nos dê um sinal que possa revelar o governante de direito de nosso reino.”
O Arcebispo ponderou essas palavras e, quando havia examinado bem o conselho de Merlin, concluiu que era uma boa idéia e digna de um povo cristão. Portanto, ele respondeu – “Eu os reunirei.”
Merlin olhou para o chão, ocultando seus pensamentos. No momento seguinte, disse ele – “Reúna-os na época do Natal, pois se nesses dias Deus nos presenteou generosamente com Seu Filho, talvez Seu coração esteja inclinado a nos dar outras dádivas.” – E, após dizer isto, ele partiu. Onde ele foi eu não sei, mas por muitos dias os homens não viram sinal de Merlin, o mago.
O Arcebispo, então, reuniu todos os Nobres e Senhores da guerra, mas ninguém sabia que esta iniciativa não partira do próprio sacerdote. Eles chegaram a Londres, em resposta a seu chamado, e muitos Cavaleiros haviam jejuado primeiro, e outros, por sua vez, flagelavam a si mesmos, para que suas preces fossem melhor ouvidas nos Céus.
No dia de Natal, eles reuniram-se todos, inclusive com a plebe, em harmonia, quer na catedral de São Paulo, ou alguma outra grande igreja; e todos os homens rezaram com tamanha seriedade que o sinal que tanto ansiavam certamente lhes seria revelado.
Um dos Cavaleiros que estava lá, enquanto orava, sentiu diante de seus olhos fechados um lampejo repentino, como se fosse um tipo de luz muito forte. Se ele havia rezado mais fervorosamente que seus companheiros, para que um grande evento lhe fosse revelado primeiro, nós não sabemos, pois julgar este tipo de coisa está além do discernimento humano. Mas, é sabido que, ao descobrir seus olhos e olhar adiante, este cavaleiro viu através da porta aberta da igreja, alguma coisa que brilhava com imensa intensidade, que o lembrou da luz que ele tinha visto. Ao observar aquilo durante algum tempo, pode perceber que se tratava de uma grande pedra branca, e que cravada nela estava uma espada dourada.
Quando o jovem ficou certo do que realmente estava vendo, foi acometido por tremores, pois percebera que não se tratavam de coisas terrenas. Então ele sussurrou para aquele que estava a seu lado sobre o estranho acontecimento, e este para o outro, que também contou para quem estivesse sentado por perto, e assim por diante até que o ocorrido alcançou os ouvidos do Arcebispo onde se encontrava.
Mas, ele, enaltecendo primeiro a glória de Deus, avisou que as preces deveriam terminar antes de se averiguar qualquer coisa.
Depois, quando a cerimônia havia acabado, todas as pessoas saíram da igreja, ansiosos para presenciar o milagre, e encontraram tudo conforme o jovem cavaleiro havia descrito.
A pedra branca estava no adro, e a espada dourada cravava nela. E sobre a espada estavam gravadas palavras que luziam como chamas. O Arcebispo as leu, apoiando as mãos sobre os joelhos.
– “Aquele que retirar esta espada da pedra, será o que legitimamente nasceu para ser Rei da Inglaterra.”
Diante de tais palavras, os Lordes e Senhores olharam uns para os outros, e as pessoas abriram seus lábios e observavam o Arcebispo. No entanto, ele manteve a cabeça abaixada por alguns minutos, como se ouvisse alguma voz proferindo palavras que e os outros não escutavam, então disse – “O sinal está dado, estais vós dispostos a acatá-lo?”
E eles responderam a uma só voz: – “Nós o aceitamos.”
Então, disse o Arcebispo – “Deus nos enviou este sinal, assim, em doze dias deverá ser dado a qualquer homem testar sua capacidade para remover a espada. Até esse dia, todos devem ser pacientes, e até lá alguns cavaleiros, famosos pela nobreza e virtude de seus atos, deverão guardar pedra.”
Tendo ditado como iriam proceder, o Arcebispo seguiu seu caminho, com o coração alegre em seu peito. Ele ainda contava que no Ano Novo deveria haver justas e um torneio, entre outras festividades, que manteriam os Nobres e a plebe juntos até que o novo rei lhes fosse revelado.
No primeiro dia do ano, as estradas estavam cheias e movimentadas com a alegria de Lordes e aldeões a caminho dos festivais. Os Lordes mostrariam sua bravura e habilidade nos torneios, e a plebe iria assisti-los e desfrutar o feriado. Com a multidão, cavalgava Sir Ector, um nobre cavaleiro que bem amara o Rei Uther, e em sua companhia seu filho Sir Kay, que fora sagrado cavaleiro no último Dia de Finados, e o jovem Arthur, seu filho adotivo, que não passava de um rapazinho.
Arthur cavalgava um ou dois passos atrás, mas o fazia por sua própria conta. Seu olhar estava tomado pelos encantos da estrada, e em seu coração palpitava a felicidade ao admirar as maravilhas do mundo. Ele estava tomado por estas emoções, que não percebeu a agitação de seu irmão, cujo rosto tornara-se repentinamente vermelho de vergonha.
Afinal, Sir Kay virou seu cavalo com um puxão tão repentino que Arthur quase se chocou com ele. – “Por que, irmão” – ele reclamou, ainda surpreso – “o que te atormenta? Minha cabeça estava nas nuvens, é verdade, mas tu quase a atiras contra a terra com tua pressa.”
O aspecto de Sir Kay era tal qual a lua da colheita, mas não possuía nenhuma alegria – “Eu esqueci de minha espada, uma atitude tola.” – murmurou ele, para em seguida bradar – “Agora recai sobre mim o infortúnio de percorrer como o vento toda a distância da estrada para buscá-la.”
– “Não” – disse o garoto rapidamente – “isso não se faz necessário. Apressa-te para alcançar nosso pai. Eu retornarei à hospedaria rapidamente, e apanharei tua espada.” – E ao dizê-lo virou-se, contente por ter uma desculpa para impor ao cavalo um ritmo mais próximo ao de seu sangue, que corria célere nas veias. A juventude lhe dominava o coração, que batia ainda mais forte, e vibrava em seus olhos. E com cascos ruidosos ele corria pela estrada, sendo o único a rumar para a cidade. E desatento a qualquer olhar, grave ou amistoso, fez seu caminho até seu alojamento.
Tendo alcançado a casa, ele parou seu cavalo, e bateu na porta. As batidas foram elegantes e sonoras, mas elas nunca traziam uma resposta. O jovem Arthur passou a agitar seus punhos, e uma grande quantidade de golpes fora desferida. Parou para ouvir. Na rua havia um silêncio similar ao de uma tumba.
O garoto bateu com a mão ao lado para que o cavalo andasse. – “O torneio, o torneio! Todos foram para lá, todos eles!”
E deveras, foi o que aconteceu.
Enquanto isso, Sir Ector e Sir Kay seguiam vagarosamente, e a preocupação de Sir Kay só aumentava, ainda mais com a demora do jovem Arthur. Vez por outra, ele lançava um olhar ansioso para trás, soltando uma nova queixa aos ouvidos de seu pai toda vez que nada via. Então, ao longe percebeu uma nuvem de poeira, que aumentava ao se aproximar cada vez mais, até que Arthur surgiu cavalgando do meio dela.
– “Vê irmão, uma espada para tua mão!” – gritou ele – “Não digas que falhei contigo, mesmo estando a espada que possuis fora de alcance, atrás de portas trancadas!”
Sir Kay tomou a espada, muito satisfeito. Examinou-a atentamente, e à medida que o fazia seus olhos se arregalavam, e sua face empalidecia. Ele tremeu e, então, cavalgou adiante. Mas, Arthur nada percebera, e deixou-se ficar para trás novamente, tomado por seus pensamentos.
Sir Kay apressou-se para alcançar seu pai, cheio de novidades.
– “Sir” – bradou num tom espantado – “certamente eu, e nenhum outro, sou o escolhido para ser o Rei da Inglaterra, posto que em minha mão, eu empunho a espada da pedra!”
Diante dessa afirmação Sir Ector virou-se, e, tendo tomado em mãos a espada que seu filho carregava, ele viu que era de fato a mesma que estava diante da igreja.
– “Dize-me, foste tu quem retirou a espada da pedra?” – perguntou ele.
Sir Kay baixou o rosto, mas respondeu honestamente. – “Não, eu não a retirei. Meu irmão Arthur, que retornou para buscar a espada que eu havia esquecido, foi quem a trouxe a mim.”
Então, disse Sir Ector a Arthur – “Conta-me, foste tu que retiraste esta espada da pedra?” – E dessa forma o garoto foi despertado de seus doces sonhos, e confessou como, tendo encontrado todas as portas trancadas, impedindo-o de pegar a espada de seu irmão, ele foi com toda pressa ao adro da igreja e puxou a espada que repousava na pedra.
– “Não havia ninguém para impedir tal ato?” – perguntou Sir Ector.
– “Não” – disse o jovem – “Eles haviam ido todos ao torneio.” – E isto era verdade, pois todos os Cavaleiros queriam testar suas habilidades.
E assim, o velho Cavaleiro ficou pensativo e, quando chegou a uma conclusão de como agir, eles viraram os cavalos, todos os três, e cavalgaram de volta a igreja, que não ficava muito longe dali. Lá chegando, Arthur recolocou a espada em seu lugar.
– “Meu filho, tire a espada da pedra.” – disse Sir Ector a Sir Kay.
E o jovem experimentou abaixar-se, para melhor aproveitar sua força. Ele tentou uma vez, duas vezes, seus músculos explodiam e sua face fervia, mas ele não pode remover a espada.
– “Dá-me espaço” – ordenou o pai, e, colocando suas mãos sobre a guarda da espada, ele também tentou tirá-la a força da pedra, mas não podia movê-la nem a distância de um fio de cabelo de seu lugar.
Mas, quando Arthur pousou sua mão sobre a arma, ela deslizou da pedra como um raio de sol através da parede. E quando ele a recolocou, ela cravou na rocha tão rápido quanto antes.
Então, disse Sir Ector ao garoto – “Pelo desejo do Rei Uther, tu foste confiado a mim, quando ainda era um bebê, e de teu parentesco com o rei nada foi-me revelado. Agora, começo a pensar que o destino a ti reservado é maior que aquele que havia eu imaginado. Vamos ao encontro do Arcebispo, contar a ele sobre estes acontecimentos.” – E, imediatamente, foram até o Arcebispo, que fora assolado por um grande espanto ao ouvir a história deles. Mas ele advertiu que nada deveria ser dito sobre o assunto, até que o Dia de Reis chegasse, quando deveria ser dado a todo homem a chance de testar seus dons.
E, finalmente, quando completaram doze dias desde o sinal divino lhes fora dado, todo mundo estava ansioso, já que eram poucos os que não desejavam ver o julgamento da espada. Como faixas espiraladas estavam as ruas da cidade, alegres com as cores das vestimentas daqueles que se dirigiam ao adro da igreja. Barões e alegres cavalheiros, jovens e velhos, ricos e pobres, Lordes e plebeus, encontravam-se todos nas esquinas e se acotovelavam para abrir passagem. Ao adro se dirigiam as esperanças de todos, e lá as mais brilhantes expectativas eram destruídas. Para aquele evento eles foram alegremente, ainda que com um eco desafinado em sua melodia; vários indivíduos admiráveis testaram sua habilidade com um coração animado, tendo se esforçado ao ponto de sentir como se estivesse partindo em dois, para em seguida ir embora com alquebrado semblante, sem ter movido a espada nem a distância de um fio de cabelo. Sempre surgia um grupo de campeões, porém, se por um lado eles se enalteciam, de outro eram humilhados, pois um forte pretendente depois do outro, agarrava a espada com esperança e a deixava em lamento.
– “É como se uma forte corrente atasse a espada à pedra” – disse um desapontado cavalheiro.
– “Parece que está afixada com cravos” – disse outro, passando um lenço branco por sua fronte.
– “Eis que se aproxima um admirável candidato” – disse um espectador de baixa estirpe, ao cutucar seu vizinho. – “Eis um magnífico Cavaleiro, certamente se alguém pode mover a espada, deve ser alguém como ele.”
– “É Sir Kay, filho de Sir Ector; deve ele ter prazer em sua tarefa!” – falou o outro, lançando-lhe um olhar de desdém – “Ele começa bem, ao pretender possuir a espada.”
Era bem dito que Sir Kay intencionava ser o dono da espada dourada. Vários destemidos Cavaleiros tentaram arduamente, mas ele esforçara-se mais que todos. A noite se aproximava, e eram poucos os remanescentes para testar sua capacidade. Por toda parte podiam ser vistas caras com expressão de raiva e irritação, pois é como a decepção afeta os homens, as faces daqueles que agarraram a arma, apenas para soltá-la e abandoná-la em seguida. A fronte de Sir Kay franzia-se violentamente, não havia aquela espada antes repousado em sua mão num outro dia? Se ele não a conquistasse, seria porque ela não devia ser conquistada. Se não pudesse arrancá-la da pedra, seria porque a tarefa estava além de qualquer homem. Seu rosto tornou-se lívido, seus dentes cerrados enquanto segurava e puxava, curvando seu corpo sobre a lâmina e levantando-o acima dela, ajoelhou, repetiu, girou. Todos se aproximaram para assisti-lo. De todos os altivos cavaleiros, ele proporcionara o mais longo e mais bravo cerco à espada na pedra.
– “O que se passa, apanhou ele a espada?” – perguntou um rapaz de róseas bochechas, por fim a seus velhos pais, tentando elevar-se nas pontas dos pés, chutando, vez por outra, os calcanhares dos outros à sua volta.
– “Não, ele afastou-se em amarga confusão. Pálida era sua face, e frios seus olhos. Mas, a espada continua na pedra.”
– “Ela gosta de ficar lá!” – disse o garoto. – “Quem vem agora?”
– “O jovem Arthur, o filho adotivo de Sir Ector. Dizem que ele é uma das crianças trocadas por Merlin, impingido a Sir Ector quando bebê. Tu deverias afastar teus olhos, pois ele não é mais do que um menino, ainda mais carente de altura que tu. Ele não pode retirar a espada.”
– “Eu o observaria de bom grado” – respondeu o menino – “Eu tenho medo de Merlin, seus olhos são como a água que está por trás dos moinhos. Mostra-me essa criança de Merlin” – Ele elevou-se, e esticou-se novamente, estendendo seu jovem e fino pescoço. – “Tem ele uma boa aparência, amigo? Não consigo ver nada dele.” – Repentinamente – “Mas que algazarra! Diga senhor, qual é o significado disso?”
Uma miríade de vozes respondeu à questão. – “Ele operou o milagre, a espada foi retirada! O garoto a empunha! Vós não estais vendo? Ela lançou-se à sua mão como se estivesse apenas esperando por seu toque!”
– “Levantai-me!” – disse o Mestre Bochechas Rosadas, seus olhos brilhavam – “Eu quero vê-lo.” – Alguém o alçou, e ele pode ver de relance a figura de um belo jovem, de cabelos brilhantes e de olhos que pareciam arder com a centelha de sua alma. Ele viu, na mão da audaz figura, uma espada que reluzia como se estivesse envolta por fogo. Sobre ela estavam escritas palavras que cintilavam com o brilho das estrelas.
O menino desceu a seus calcanhares e cobriu o rosto.
– “Por que agora?” – questionou seu benfeitor.
– “Eu pude ver o sol.” – murmurou o garoto, piscando e derramando água de seus olhos.
Ainda diante do crescente ruído das línguas, vozes furiosas uniram-se à discussão.
Mestre Bochechas Rosadas retornou à realidade.
– “Os Nobres estão a queixar-se.” – contou-lhe o homem ao lado – “Eles dizem que ele não passa de um menino, e de fato suas palavras são verdadeiras. Eles dizem que o reino não pode ser governado com justiça por rapazinho sem barbas. Eles reclamam que ninguém sabe donde ele veio. Possivelmente, quem sabe, ele deva ser algum pirralho indigente. Veja, ele recolocou a espada, e ela cravou-se tão rápido quanto saiu. O Arcebispo recuou frente os Nobres. No dia da Candelária os homens deverão novamente esforçar-se para retirar a espada.”
E estas eram palavras verdadeiras, o Arcebispo havia cedido. Na Candelária haveria uma nova tentativa. A multidão tagarelava sobre o fato, e discutindo começou a debandar.
E quando chegou o dia da Candelária, o jovem Arthur novamente retirou a espada, e ninguém mais pode movê-la de seu lugar. E, assim, pois novamente os Nobres contestaram, lançando olhares que vertiam ira ao jovem, e exigiram uma nova avaliação para a Páscoa.
E na Páscoa os mesmos atos repetiram-se, e por consequência o assunto prorrogou-se até o dia de Pentecostes.
E em Pentecostes a espada tornou a mover-se para abençoar o rapaz, e não se rendera a nenhum outro.
Então, levantara-se a plebe, gritando em uníssono – “Arthur será nosso Rei! Não tem a espada o revelado a nós, por um sinal de Deus? Nós não necessitamos de outro que não seja ele. Chega de adiar o fato. E nossa oração será para que nos perdoe por atrasar o que tem de ser!” – E assim disseram, dobrando seus joelhos.
Em seguida, muitos dos galantes cavalheiros curvaram-se também, e bradaram – “Arthur será nosso Rei!” – E, tão grande foi o clamor e o ruído que nenhum outro protesto pode ser ouvido. E todo aquele que pretendia tocar uma melodia diferente, teve de engolir seu desagrado, e como diante de uma graça alcançada eles deviam se portar, e dobraram os joelhos junto de seus companheiros.
E, desse modo, foi o jovem Arthur aclamado Rei do reino da Inglaterra, conforme fora revelado por Deus em resposta a fervorosas orações. A espada da pedra ele depositou imediatamente sobre o altar, e ali foi sagrado Cavaleiro.
E antes que aquele ano findasse, Merlin, o mago, foi novamente visto entre os homens, trilhando caminhos pouco conhecidos. Então, tendo encontrado um grupo de Nobres que ainda guardava o descontentamento em seu âmago, falou a eles, lançando-lhes um olhar fulgente.
– “Sabei vós que este jovem de cara sem barbas, a quem saudastes tão tardiamente, é ninguém menos que o filho legitimamente nascido de Uther, o falecido Rei, que agora por justiça reina no lugar de seu pai. Fora Merlin, o mago, quem exigira a criança do Rei como o preço a ser pago por um serviço prestado a ele, em relação a seu casamento, mas secretamente zelava pela ventura do próprio bebê. Pois a criança estava indefesa e o Rei próximo da morte e incapaz de protegê-lo, e era de meu conhecimento a natureza de vossos corações. Vós sois homens rancorosos e causaríeis dano ao menino. Por conseguinte, eu, Merlin, exigi este pagamento do Rei Uther, chegando a um acordo de que Sir Ector, que é um Cavaleiro justo, deveria educar a criança. E agora, respondei-me, rogastes vós aos Céus por um Rei mais verdadeiro do que este Rei é?”
E todos eles ficaram em silêncio, baixando as cabeças.

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Mais uma lenda clássica que traduzi sem compromisso a partir deste texto aqui. No original a espada está presa à pedra trespassando uma bigorna, mas como não gosto dessa imagem tomei a liberdade de excluir a bigorna, assim como mudei uma expressão aqui e outra ali que não ficavam bem.
Excalibur realmente não é citada pois ela e a espada da pedra não são necessariamente a mesma arma. Segundo antigos poemas Arthur teria quebrado sua primeira espada em uma luta, e recebera Excalibur, cujo nome celta seria Caledfwlch, das mãos da Dama do Lago. No filme Excalibur de 1981 (recomendo), baseado nos escritos de Thomas Malory, as duas histórias são muito bem costuradas para construir a lenda sobre uma única lâmina.
A forma como este conto se apresenta aqui já demonstra a forte influência dos dogmas cristãos já consolidados, ao passo que o Arthur histórico, se de fato houve algum Arthur, teria existido por volta do século V d.C., quando o cristianismo ainda engatinhava. Mas, algo interessante de se observar neste texto, mesmo sendo catolicamente correto, é que Merlin, o mago, é quem sutilmente engendra os acontecimentos. O elemento pagão, mesmo aqui, está presente. Em romances recentes como as Crônicas de Arthur, de Bernard Cornwell (magnífico, não deixe de ler), e As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley (somente os livros, o filme é péssimo), é possível vislumbrar melhor, e com diferentes abordagens, o conflito entre o paganismo e a nova religião.

Agradecimentos a Marco "Kull" Nedopetalski, pelo auxílio com o inglês arcaico.

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